Sobre o alimento/conexão

Sobre o alimento/conexão 


Maria Angélica de Oliveira

Lucélia de Lima



  Paramos em um posto de gasolina e perguntamos para a frentista sobre o restaurante do outro lado da avenida. Ela respondeu que o “de comer” ali era muito bom. Fazia muito tempo que não ouvia esse termo. A palavra comer, assim, sozinha, é bruta, cheia de pontas. Mas o “de comer” soa pueril: riso de criança ainda não atravessada pelo medo.

  Fico pensando na forja de um termo assim, tão pouco encontrável na culinária gourmetizada, ou no alimento muito, muito processado. Molho de tomate com gosto de corante; biscoitos e bolachas exalando uma fragrância artificial de baunilha, chocolate ou morango enrijecidos pelo tempo de prateleira. 

  O corpo é sagrado. Levar o alimento à boca deveria ser como o soar dos sinos chamando pelos fiéis. O cheiro, a embriaguez da conversa, as texturas, os sabores produzidos pela cultura de plantar, semente por semente: escolher a terra, preparar, aguar, colher cuidadosamente, embalar, levar ao mercado, à feira, vender, comprar, preparar, misturar diferentes cores. Associar, dissociar, secar, fermentar, envelhecer, cozinhar. A cultura de preparar o alimento, o “de comer”, envolve conhecimentos milenares fiados na alegria de homenagear a vida, celebrando a continuidade, a existência.

  Junte um abacaxi, folhas, fruto e um tubérculo. Bata até que o abacaxi se dissolva nas folhas, que não se consiga separar fruto do tubérculo. É sobre encontros e separações. Pronto, a mais perfeita refeição do dia. Sinta o cheiro da fruta, perceba o seu corpo recebendo o cuidado de preparar a terra, de aguar, de zelar. Dê-se conta da efervescência do comércio, das milenares feiras, espaço de encontro, de liberdade da conversa sem censura, da cultura de vender o que fora plantado, de oferecer com as mãos cheias de calos a alface tenra, suculenta.

  O corpo é uma unidade rica em multiplicidades: quanto mais cores, mais texturas, preparos vários, mais sustido, nutrido. O corpo é uma unidade que se conecta. E cada conexão depende do encontro, do abraço. A indústria do alimento sabe pouco sobre isso, mas os nossos antepassados receberam e passaram o legado do sabor com o saber; do desejo vivo.

  A conexão do corpo com o meio se dá em múltiplas linhas. Se essas linhas são cortadas, como numa esteira de produção, o corpo se perde, se desequilibra, não se presentifica. Um corpo assim pouca autonomia tem. Mas aquele que se sabe herdeiro brinca de capoeira, sabe das ondas do vento, entende os caminhos no ar.


Comentários
* O e-mail não será publicado no site.